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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

TRANSCENDÊNCIA

Hoje saio de casa com os pés descalços, vestido solto. Eu saio com os cabelos revoltos, sem presilhas, sem grampos, sem laços de fita. Mas, antes disso, olho-me no espelho e percebo as imperfeições que sempre tentei esconder. Mesmo assim, hoje não uso creme facial, nem pó compacto. Hoje eu não uso batom. Nenhum tostão no bolso do vestido. Eu nem preciso de bolsa a tiracolo. Assim, sem dinheiro e sem referenciais, eu assovio pelas ruas. A roupa frouxa, cabelos soltos e sem maquiagem, eu saio de casa, com a cara limpa. Esqueço a carteira de cigarros em cima da mesa da sala de jantar. Na rua, sorvo uma tragada de oxigênio, respiro fundo. As endorfinas atuam, e tento não me lembrar de nada. Olho para as acácias do meu bairro e aspiro cheiros de mato molhado. Assim sem carteira de identidade, sem formalidades, eu me reconheço somente pelo meu jeito de vestir, pelo meu traje solto. As endorfinas se ativam no meu cérebro e sou cada vez menos lúcida. As ruas estão agitadas. Por alguns minutos, entro em contato com minha insanidade e sou feliz. Eu danço no meio da rua, na frente dos carros parados no semáforo. Eu me divirto com os pingos de chuva caindo no asfalto, molhando os automóveis, encharcando meus cabelos, empapando meu vestido que se cola ao meu corpo. A chuva torna meu rosto mais pálido, meus cabelos mais escorridos, meus mamilos excitados, duros, arrebitados. A chuva me faz mais louca e mais feliz, por instantes. Eu danço em rodopios, eu corro, eu levanto o vestido, toda molhada, em desalinho. Em plena euforia, alguém me segura pelo braço. “Senhora, afaste-se do meio da rua, a senhora está atrapalhando o trânsito”. O policial me pega com firmeza e me leva até à calçada, onde meus filhos e meus bisnetos me aguardam. Desde então, estou aqui, nesta casa, não sei se num hospital, se num asilo. Tosaram-me, e não mais sei quem é minha família. Escrito por Dora Limeira

Um comentário:

Mari Krela disse...

Fenix !
é isso ae, bjus